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Do outro lado da porta…

Ser renal crônico em processo de diálise todo mundo sabe que não é fácil, mas geralmente durante a hemodiálise as coisas são calmas, pois os técnicos ajudam muito fazendo brincadeiras e entre os pacientes mesmo rolam conversas que acabam distraindo bastante.
Quando eu passo pelo outro lado da porta, onde eu tenho que iniciar um tratamento que vai me ajudar a continuar viva, eu sempre peço para correr tudo bem, não só comigo, mas com todos que estão lá, o que na maioria das vezes acontece.
O problema é quando chega um paciente que esta em estado grave, e você é obrigado a assistir bem na sua frente uma pessoa extremamente debilitada dialisando. Estar amarrada nessa hora, sem poder correr do lugar para não testemunhar algo assim é muito difícil, tem que ter muito estomago, muita força e muita fé.
Eu me considerava com sorte, por nunca ter feito parte de um momento desses, mas sabia que um dia iria acontecer, e esse dia foi na terça (17/05/2011). 
Uma senhora foi para meu Box, pois a Dna. A. pediu transferência de clinica. No começo da sessão foi tudo tranquilo, essa senhora dormiu boa parte do tempo, contudo, após o café ela começou a se movimentar lentamente, como se estivesse despertando bem devagar, eu como estava sem sono e sem paciência para ver filme no PSP, passei a prestar atenção nessa senhora, algo parecia estar estranho, então fiquei atenta, pois ao menor sinal de que algo não iria bem eu solicitar ajuda. Acho que ela ficou por mais ou menos uma hora nesse estagio de movimentos letárgicos, mas enfim despertou de vez. Ela começou a sussurrar  “ai, ai, ai”, no terceiro “ai” eu já estava chamando um técnico para socorrê-la, com muita calma um dos técnicos chegou, mediu a pressão dela que estava normal  e saiu de perto, ela continuou “ai, ai, ai…” e eu caí em desespero, chamei novamente um  técnico, dessa vez era outro, que mediu a pressão, perguntou onde estava doendo, mas ela não respondia onde doía, só falava que iria morrer para chamar os filhos dela, o técnico devolveu um pouco de soro para ela e logo saiu de perto. A senhora não parava com os “ai, ai, ai…” e eu desesperada o tempo todo chamava alguém para ajudar, de repente ela parou com o “ai, ai, ai…” e começou a gritar, “socorro, me tira daqui….”, “meus Deus, me poupe disso…”, “por favor ajuda, por favor meus Deus…”, “chama meus filhos, eu não quero morrer sozinha”, e ficou gritando nessa mesma ordem as frases, como se fosse uma musica de terror. Eu não sabia se chorava, conversava com o psicólogo que estava tentando saber como foi minha semana ou se pedia para ser desligada e fugia da clinica. Foi uma angustia ver o desespero daquela senhora, que a sensação de impotência caiu em minha cabeça e praticamente todo o otimismo que tento carregar comigo durante a diálise desapareceu. 
Nesse momento, já sem otimismo nenhum, somente sentimentos de derrota vinham em minha mente. Fiquei pensando em quantas pessoas reclamavam do que eram e de que a vida delas eram difíceis sem nem ter um bom motivo para justificar essa “reclamação gratuita”, e  mesmo assim elas estavam soltas, com oportunidade de fazer o que queriam e não aproveitavam, desperdiçando a vida que tem nas mãos e eu estava lá com sede de viver, vendo somente a morte na minha frente, sem a chance nem de ajudar.
Depois de todo escândalo e desespero, eu fui informada que ela tinha Alzheimer e que estava sob efeito de sedativos, mas que a hemodiálise foi tirando aos poucos o sedativo dela e por esse motivo ela foi despertando lentamente e quando acordou fez o escândalo que fez, mas o estrago nos meus pensamentos já estava feito, meu corpo doía todo de tanto estresse emocional que sofri durante a sessão e ao final da hemodiálise, me sentia destruída por dentro, mas era uma destruição pessoal, não podia espalhar esse sentimento como se fosse um vírus, então, ao passar para o outro lado da porta, o lado onde a vida continua, onde as pessoas podem fazer o que querem, eu simplesmente respirei fundo e abri um sorriso, o mesmo sorriso que dou sempre quando saio da clinica, e me despeço dos acompanhantes com os olhos de “tudo esta bem”, mas com o sentimento “vamos logo embora daqui”, dei as costas refletindo que essa é minha realidade e a realidade de todos que passam pro lado de dentro daquela porta.
Quando você vive algo assim, uma venda cai de seus olhos, e problemas insignificantes se tornam realmente insignificantes e você enxerga realmente o que é um problema, o que faz realmente diferença, o que IMPORTA e o que NÃO IMPORTA.
Eu só estou escrevendo isso, pois eu queria que as pessoas que tem saúde enxergassem que problemas como atrasar no trabalho e levar uma bronca do chefe, receber uma multa, ser reprovado em algum teste, ter dívidas, levar um fora de alguém, entre outras coisas, são problemas que você pode contornar, e se parar para pensar, você mesmo causou esses problemas. Não quer levar bronca do chefe? Saia mais cedo. Não quer ser multado? Não cometa mais nenhuma infração, preste atenção. Não quer ser reprovado? Estude mais, seja responsável. Não quer ter dividas? Tenha disciplina, não gaste mais do que você pode pagar. Não quer levar um fora? Tenha tato, invista em pessoas que combine com você. 
Quando acontecem essas coisas é chato? É! Mas basta refletir, se você tem saúde, você tem tudo, você pode tudo. A maioria dos problemas que as pessoas reclamam, perdem noites, se estressam, podem ser contornados, pois depende delas mesmo. Poucas atitudes podem mudar a situação, basta força de vontade e consciência do que realmente importa. Para que criar mais problemas, indo beber, indo fumar, ingerindo drogas (isso inclui calmante, relaxantes, etc.), que servem somente para fugir do problema? Por que não enfrenta-lo? E quem desconta suas frustrações em terceiros? Isso faz com que o problema se afaste? Não, isso triplica o seu problema.
Eu queria que essas pessoas que reclamam por pouco, que criam os próprios problemas, ou pior, que tentam resolver seus problemas através de vícios e acabam criando outros maiores, que essas pessoas passassem alguns minutos do outro lado da porta, onde existem dezenas seres humanos lutando para viver, que apesar das limitações, ainda agradecem pela vida que tem, só para enxergarem assim como eu hoje enxergo, o que importa e o que não me importa.
Infelizmente ainda precisamos ver outros piores que nós, para entender o quanto somos felizes.

Um comentário em “Do outro lado da porta…”

  1. Eu assino embaixo! Fico louca quando minha amiga reclama que fulaninho nao liga pra ela ou que brigou com os pais por coisas bobas. Vem reclamar pra mim que estou toda machucada por causa da fistula ou cansada por causa da hemodialise da vontade de ligar ela pela lingua na hemodialise para aprender no que deve reclamar de verdade. Bjokas adoro seu blog

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